sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

¿Qué está por hacer con el cuero de chancho, Don Lauro?, pergunto ao velho, que é velho só na pele e nos movimentos, não o sendo nos olhos. Responde sem hesitar, desenvolto: ¡Comprar alcohol!

Fecho a mala do carro com o ímpeto que sempre é preciso dar-lhe e o cheiro à pele do animal baixa de intensidade, para alívio colectivo – menos de Don Lauro, que parece não o sentir. Senta-se na parte de trás do carro e com a mão direita agarra o cinto do passageiro da frente. Pendura-se, a bem dizer, no cinto que ficou esticado sem cumprir a função para a qual o desenharam. Caminhos de terra. Aperta o cinto com a mão nervosa, um pouco ao alto como se fossem as rédeas de um cavalo. E inclina o corpo para a frente, com expectativa. Dá a impressão.

Don Lauro é um dos participantes locais do projecto. No total devem ser à volta de quarenta camponeses que se ofereceram para registar os rastos de determinadas espécies de animais selvagens que vêem quando andam pelo campo à procura das vacas ou das cabras próprias. Porque aqui os domésticos não são guardados em terrenos fechados nem em currais. Não se pode fazê-lo porque os animais morreriam à fome e à sede. As pastagens que existiam noutros tempos, na época em que chegaram os colonizadores, existiam devido às queimadas regulares levadas a cabo pelos indígenas que ocupavam o território. Mas, com o passar dos anos e as voltas do mundo, estas práticas cessaram. Vieram os brancos, trouxeram as vacas. E as vacas, pouco a pouco, foram comendo tudo o que havia para comer. E os fogos dos índios pararam. E as pastagens deixaram de se regenerar. E no espaço que antes ocupavam e agora ficava livre esticaram braços os arbustos mais espinhosos que já vi. Daí que, actualmente, as cabras, vacas, porcos e ovelhas se vêem obrigados a palmilhar muito campo para satisfazer as necessidades alimentares básicas. Uma folhinha aqui, uma folhinha acolá. E os donos desses animais vêem-se obrigados a palmilhar muito campo para ter um mínimo de controle sobre as manadas.

Foi por funcionar assim a coisa que, na metodologia do trabalho, se incluiu esta participação local. Dificilmente, nesta zona do mundo, se encontram terras que não estejam a ser usadas por alguém – trate-se ou não do “dono” legal. E ter a colaboração e o olho treinado das pessoas que percorreram os caminhos ao longo da vida traz muitíssimas vantagens. Também é verdade que acaba por transformar o tradicional trabalho de amostragem de um biólogo numa sucessão de reuniões e encontros sociais. Mas a relação das pessoas com a Natureza é também um lado interessante de explorar, que às vezes surpreende.

Don Lauro tem uma casita de duas divisões na aldeia e um campo a quinze quilómetros de distância, onde vivem a filha e o genro e onde o filho também vai ajudar nos trabalhos. Ele teve que se mudar para o pueblo devido aos problemas de saúde da mulher. Mas não gosta.
¿Y qué hace usted, Don Lauro, todo el día en el pueblo?
Y… ¡me aburro!
Amanhece fresco e o corpo, ligeiramente entorpecido por ter dormido em esteira em vez de colchão, parece encontrar uma vibração precisa e natural ao entrar nele o ar leve, o cheiro a plantas, o som dos pássaros. Apesar de viver numa cidade muito verde, sempre que chego ao campo apercebo-me do tanto que perdemos ao desvincular-nos dos ritmos da Natureza.

Levanto-me sem esforço e aproximo-me da janela aberta de par em par para o dia que começa a surgir. Os cardos enormes que fazem de cerca ao terreno são ainda silhuetas num céu que clareia devagar e depressa ao mesmo tempo. Viro-me e, depois de quatro cuidadosos passos, alcanço a chaleira, que encho com um pedido mental de silêncio – como se alguma vida a animasse. Quero fazer o mínimo de ruído possível. Nenhum dos dois corpos se mexe no chão da pequena sala e faço por não despertar as duas almas que lhes correpondem. É ou não sagrada a solidão de um dia que começa?

Ao voltar a apoiar-me no parapeito da janela, já as cadelas me olham do lado de fora, esse olhar redondo que só os cães e as crianças sabem expressar. Chegam também elas em silêncio e abanam as caudas. Começou o dia, anunciam. E, à sua maneira, sorriem.
Fui ao campo outra vez. Não iamos desde Novembro, refugiadas que estávamos do calor sufocante que bombeia o coração sul-americano nesse lugar seco e retorcido. Chamam El impenetrable à região onde nos metemos quase todos os meses, coisa que quando cheguei pensei dever-se aos arbustais duros que rasgam roupas e deixam espinhos metidos na pele. Não era isso, afinal.