sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Um siku é um instrumento de sopro que se toca na região andina. Tem duas fileiras paralelas e os seus dezasseis canos variam de tamanho para produzir diferentes sons. São aquelas flautas de pan que já todos vimos algum peruano disfarçado fingir que toca em frente ao Padrão dos Descobrimentos. Costumam fazê-lo em playback, apresentando ao público versões de el condor pasa e músicas dos Vangelis. Algumas vezes usam adornos com plumas na cabeça, que lhes caem ao longo das costas e que, curiosamente, são uma peça tradicional de indígenas norte-americanos. Ora os andes acabam na Colômbia. Mas a personagem criada desta forma responde, talvez, às expectativas de uma audiência confusamente informada por diversos flashes televisivos ao longo da vida. E, afinal de contas, é uma questão de sobrevivência. Os turistas tiram fotografias, compram o CD ou deixam algumas moedas. Dieguito se fue a europa.

A primeira vez que ouvi um siku, estava num pequeno restaurante, a meia-luz, no país de Gales. Tinha doze anos. Enquanto comiamos pizza, três ou quatro rapazes de pele escura e olhos rasgados, vestidos da mesma forma que os do Padrão dos Descobrimentos, começaram a tocar no canto da sala. Só que estes tocavam a sério. Os sopros e as cordas misturavam-se intensos e harmoniosos e havia em mim todo o espaço do mundo para deixar entrar essa música exótica. É que a infância ainda não abandonara o palco. Podia ouvir com cada célula. Julgo que essa noite estive em transe e que subi e desci montanhas, atravessei nuvens, abracei pedras e cheguei ao âmago de uma existência nova. Até que a porta do restaurante se abriu e o frio britânico me trouxe de volta.

Dizem que um siku é extremamente difícil de tocar. E que são precisos dois para obter uma escala completa. Nas festas religiosas da região andina argentina – principalmente durante o carnaval, correcção: a semana santa – chegam a juntar-se mais de cinquenta músicos que tocam e peregrinam juntos ao topo de alguma colina. Em certos lugares, acompanha-os uma pequena multidão de curiosos e interessados, apesar dos descendentes dos incas serem pessoas fechadas ao que é de fora.

Uma das coisas que me continua a supreender deste lado do oceano é a manutenção das tradições. Vinda de um país em que o campo se despovoou, as histórias são cada vez mais difíceis de encontrar e a música tenta ser resgatada por uns poucos (ainda que bons), dar de caras com lugares como a Quebrada de Humahuaca, em que todos os anos se desenterra um diabo e se provoca com esse acto uma festa infernal, à qual acudem todos os locais, vestidos e bebidos a rigor, tocando, dançando e cantando como fazem desde há séculos é... emocionante. E pode parecer estranho, de certa forma contraditório, que o "novo" continente guarde melhor as suas coisas "velhas". Mas a verdade é que parece que guarda.

A segunda vez que ouvi tocar um siku foi numa peña, na cidade de Salta. O lugar - um edifício encantador ao qual cheguei noite dentro, debaixo de uma chuva grossa - era uma antiga casona espanhola, construção colonial que aparece um pouco por toda a américa latina. Entrando pela porta principal, estava-se numa pequena divisão com mesas de madeira simples e muita gente. Tudo ocupado. Dessa primeira divisão abriam-se duas portas mais, na parede oposta. Uma dava a uma nova divisão, do mesmo estilo, e a outra a um grande pátio interior. No pátio, um forno a lenha e algum rebuliço de empregados que iam e vinham de mãos ocupadas. Desta zona aberta acedia-se a muitas outras portas, todas elas levando a salinhas e saletas semelhantes, com paredes pintadas de cores escuras e decoradas com referências musicais . Era necessário percorrer, não só para conhecer mas também para tentar colocar-se bem. Porque definir uma peña como um restaurante seria pecar por um grande defeito. É que ali toca-se música. E canta-se música. Mas não existe uma banda, um público, um show... É um lugar onde cada pessoa vai com o instrumento que sabe tocar e se senta à mesa a beber e picar qualquer coisa, até que se sente inspirada. Na noite em que fui, tive a sorte de ficar sentada na mesma sala que um grupo de músicos de muita arte. E entre empanadas de queijo e cerveja saltenha, as chacareras seguiram-se às zambas docemente. Até que, de algum lado, saltou um carnavalito e, com ele, um siku da mochila de um senhor. Que bem que tocava! Um carnavalito está longe de ser uma melodia nostálgica ao estilo do el condor pasa. Trata-se de uma música de ritmo rápido que se toca e dança em grupo com muita energia e que caracteriza - precisamente - a época do carnaval.

O senhor soprava que nem louco, as bochechas afogueadas, a exibição impecável. Não tinha olhos rasgados nem usava plumas na cabeça. Mas só não me transportou aos andes porque já estávamos nos andes.