sábado, 17 de março de 2012

Em Asunción a vegetação parece não se dar ainda por vencida. Há luz e céu e verde por todo o lado. Um verde explosivo. Ao entrar na cidade, sabemos que é um verde que não arreda pé. E olhamos com doçura as várias casas coloniais que polvilham a cidade e se enquadram com elegância nessa vida de palmeiras e cheiro doce.

Nas ruas do centro, a agitação é sul-americana. As temperaturas sufocam no Verão e nem os sumos de fruta livram da agressão climatérica (não posso dizer, no entanto, que o Chaco seja diferente).

Da primeira vez que aqui vim, tinha acabado de regressar à Argentina depois de quase seis meses em Lisboa. E pouco mais conhecia do que Iguazu, Buenos Aires e a Bolívia andina – três realidades que não têm muito a ver entre si. Era Dezembro, um dos meses mais quentes do ano e, à conversa com um antropólogo, ele sugeriu uma ida à capital paraguaia (afinal de contas, só a três horas de distância) para ver a apresentação de um livro. Se bem me lembro, tratava-se de um estudo feito em território ayoreo, uma dos muitas etnias originárias existentes no Paraguai, no qual os indígenas tinham participado. Serviria para a caracterização e, em última instância, protecção desse mesmo território.

Tinha sido um Outono frio em Lisboa e, ao cair em cheio na região chaquenha e viajar depois a Asunción, tive sérias dúvidas quanto às capacidades de regulação térmica que possuia. A ideia com que fiquei da cidade, dessa primeira vez, foi que o sol calcinava, o passeio junto ao rio estava mal aproveitado e que a comida era estranha. Numa ruela encontrei uma tasca cujo menú à porta indicava que tinham “peixe à portuguesa”. Saltitando a curiosidade, aproximei-me do balcão emocionada. Um senhor japonês olhou-me muito sério atrás das rugas e nelas pareceu-me ver a concentração de quem se esforçava por entender a pergunta. Que como era isso do peixe à portuguesa. E a resposta acabou por sair: “peixe cozido, acompanhado com aloz”.

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(serão precisos comentários?)

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Demorei-me uns segundos na cara oriental que tinha à frente – creio que tendo perdido a minha toda a expressão. Proto-palavras iam e vinham como ondas que não se chegam a formar e, nesses segundos, lutava com a frustração sem decidir se fazer uso do espanto ou da apatia. Cozido?... Com arroz?...

Já sabia que os argentinos têm um molho de tomate “à portuguesa”, um frango “à portuguesa” e, há pouco tempo, encontrei até uma gelataria em Resistência que oferece um sabor de “crema portuguesa”. Sendo que o molho é feito com cebola, alho, pimento e tomate e o frango é aquilo a que eu chamaria “frango com cerveja”, não posso deixar de questionar-me de que será feito o gelado... Mas a verdade é que, apesar de já estar desperta para os vários “à portuguesa” deste mundo, o do peixe – confesso – desiludiu-me particularmente. Talvez porque me ilusionou particularmente. Cheguei mesmo a ter vontade de mandar o japonês à merda. Mas depois passou. E considerei perguntar-lhe porque tinha decidido baptizar dessa forma o prato, que influências tinha da cozinha portuguesa... Mas o entendimento mútuo anunciava-se complicado e afastei-me, mastigando a questão.

A apresentação do livro foi estranha mas interessante. Havia muitos ayoreo na super moderna sala de congressos da cidade – caras que se notavam diferentes das dos wichi e q’om que conhecera no chaco argentino. No geral acho que eles não estavam muito concentrados e eram vários os que me faziam lembrar crianças pela falta de preocupação com a forma de sentar ou com o lugar onde dirigiam o olhar. As roupas das mulheres eram coloridas e vários usavam uma fita na testa. Da apresentação não me lembro de muito – também a mim faltava a concentração. Só que, a dada altura, uma senhora já velha, descalça, com cabelo comprido grisalho e fita na testa, se aproximou do estrado com passos lentos e decididos e cantou uma canção pouco harmoniosa, ajudada apenas por um chocalho de unhas de cabra. Era surpreendente a pouca importância que dava à audiência. Virava-se de costas ou de lado para nós e ignorava completamente a tentativa do organizador de fazê-la subir ao “palco”. E não por timidez. Ela, inclusivamente, decidiu quando era altura de cantar. Simplesmente levantou-se, aproximou-se e começou a cantar, saltando por cima de introduções e aplausos.

À saída esperava um cocktail. Os ayoreo são um povo originalmente caçador-recolector.










(acho que com estas duas frases poderia ter acabado o relato e deixado trabalhar a imaginação de quem lê)


Creio que a maioria dos ayoreo presentes nunca tinha ido à cidade e nem mesmo a povoações mais pequenas. Quando se abriram as portas da sala de conferências e saímos para o hall, foi vê-los com sacos de plástico, bolsas feitas por eles ou canastos a pegar nas travessas carregadas de canapés e despejar tudo lá para dentro. Comiam sem parar e guardavam sem parar. Garrafas de sumo e refrigerantes de litro e meio? Saco! Bocas cheias que mastigavam continuamente, sacos carregados que passavam de uns para outros para ir depois recolectar mais comida. Pode-se dizer que, entre todos, mulheres, homens, crianças, jovens, velhos, saudáveis ou mais ou menos, houve naquele momento um saque ao catering. Os garçons, zelosos da sua etiqueta, corriam a trazer mais comida e substituir as garrafas de bebida. Coitados, que tarefa mais ingrata!

Não podiamos disfarçar os ataques de riso. Era hilariante! Os engravatados, por seu lado, optaram por fingir que não viam o que se passava e mantiveram as conversas uns com os outros, naquela pose a que sempre se sentem obrigados.

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