segunda-feira, 12 de março de 2012

Sempre que passo uma fronteira terrestre entre a Argentina e outro país, sinto que voltei a entrar pela primeira vez na américa do sul. Excepção seja feita ao Chile, que nao me deixou tal sensação. O país de Allende mostra uma face mais familiar àqueles de nós cujas raízes se estenderam nesses lugares onde existem autoestradas, carros modernos, possibildade de pagar com cartão e limpeza assética (às vezes). Uma das primeiras coisas que uma amiga argentina comentou como curiosidade, ao visitar o continente europeu, foi a existencia de um quiosque da Hageen Dazs à saída do aeroporto de Barcelona, em vez do esperado carrinho de cachorros quentes gordurosos. Para quem cresceu num lado e tem passado os últimos anos noutro lado, a mudança já não surpreende tanto. De ruas que amanhecem cheias de vendedores - de mate e chá com leite em termos, gritando “chipá, chipá, chipá!” – em Asunción do Paraguay, em questão de horas materializa-se, como se por mágica condensação de partículas de modernismo, um aeroporto suiço limpo, cheio de linhas e de brilhos, e de preços chocantes e de pessoas educadamente silenciosas. São uns minutos de ajuste. De certeza que se paro, frustrada, em frente a uma máquina dispensora de bebidas avariada, nenhum europeu interromperá caminho para, interessado, perguntar “yy… qué pasa?” e deixar-se ficar comigo a olhar para o objecto, como se dessa partilha pudesse nascer a solução. De certeza, por outro lado, que na Suiça não é preciso ouvir assobios e comentários a cada passo que se dá, suportar algumas invasões, pelo facto tão natural de se ter nascido mulher. Mas a tudo o espírito se habitua. Quase tudo o espírito deixa de ver. E então, quando se cruza uma fronteira, volta por momentos essa pequena abertura que, às vezes, e ainda que seja fugaz, deixa espaço à surpresa.

No Paraguai falam-se duas línguas, o castelhano e o guaraní. O primeiro mais oficial, língua de publicidades, de televisão e de ocasiões “sérias”. O segundo, mais caseiro. Mas ambos generalizados e ensinados na escola. O castelhano fala-se com um engraçado sotaque guaraní, cantando da mesma forma um e o outro. Diz quem sabe, que o guaraní é uma língua muito completa e que permite expresar muitas ideias que o castelhano limita. E ao entrar no Paraguai logo os sons se tornam desconhecidos. As conversas fluem e alternam palavras de uma língua e outra sem quebras nem hesitações. Em regiões de fronteira com o Brasil acrescenta-se-lhe ainda o português.

Além da língua, vibra por todo o lado o movimento comercial da rua. Feirantes por excelência. Vendedores de comida, bebida, todos os aparelhos electrónicos que se queiram e marcas falsas de tudo. Mercados paraguayos... Cuidado com as coisas próprias!

É também no Paraguai que tenho visto algumas das manifestações cristãs mais engraçadas. Em Ciudad del Este, por exemplo (um gigante do comércio negro sul americano), entrei num armazém de roupa que, em cada piso, tinha um daqueles pequenos ecrãs por onde vão passando, em fila, mensagens em letra vermelha. E corriam nessas letras as novidades da loja? Não. Informavam sobre descontos e créditos? Também não. Horários? Não, nada disso. Relembravam aos mais distraídos, a cada quinze segundos, que “Jesus te ama”. Não se fosse dar o caso de, com a comoção causada pelos preços baixos e a busca frenética por mais um trapinho, ver-se o espírito menos elevado e Jesus deixado à margem da situação. Compra muito, mas não te esqueças que Jesus te ama. Deixa a carteira, mas sai de coração cheio! Talvez não faça sentido, mas a coisa dava ideia de um dedo apontado, daqueles que dizem em voz grave “I’m watching you”. O que me pareceu contraprodutivo para quem estava ali para vender. Mas depois apercebi-me que “Jesus te ama” é uma frase tão generalizada neste lugar que talvez já se tenha tornado, para eles, uma dessas situações que o espírito deixa de ver.

Esta manhã, ao entrar no país, notei um autocarro que acompanhava o ritmo da minha camioneta na estrada. Lateralmente sobressaltavam, com letras grandes, as palavras “EXCURSIONES” e “TURISMO”. O que não era muito coerente porque se tratava, sem dúvida, de um autocarro urbano, as senhoras sentadas de pernas juntas e sacos de plástico no colo, os cabelos esticados, recém-penteados, algumas de maquilhagem, outras não. Os homens mais relaxados, de olhar ausente e superior. Alguns de boné na cabeça. Adolescentes de uniforme escolar e ar de quem cheira a pastilha elástica. Mas não foi a alusão turística a uma situação que claramente não o era, aquilo que me chamou mais a atenção. É que, ao ultrapassar-nos em momento oportuno, o veículo deixou à minha vista a parte traseira. Onde se lia: “Conozca a Jesus Cristo”. Ou seja, nalgum momento da sua existência, esse autocarro tinha feito excursões turísticas para conhecer Jesus Cristo!!!!

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Em relação ao paradeiro do senhor, todos sabemos que, das duas uma, ou está no céu ou está em toda a parte. Resta a dúvida... Poder-se-á chegar de camioneta?

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